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terça-feira, 12 de outubro de 2010

47 - Miragaia e a Judiaria

Tem esta bela freguesia da nossa Cidade do Porto, muitas estórias e lendas. Talvez a mais antiga seja a que envolve o Rei Ramiro, o Castelo de Gaia, o Mouro e a Bela Princesa de nome Mira e por aí fora. Mas a história é história e é baseada nos vários escritos dela que proponho este passeio. Miragaia (de Baixo) foi um pequeno aglomerado populacional que nasceu a partir do rio, já referido documentalmente no séc. X, como sendo um local onde atracavam os romanos vindos do Norte antes de seguirem viagem para sul. Quando as gentes da Cidade se voltaram para ocidente fazendo-a crescer fora das muralhas Suevas ou Primitivas, Miragaia cresceu também, subindo o morro. Para os lados de Monchique. Referencio estas muralhas que existiram em torno de Sé, enquanto os arqueólogos não se pronunciarem sobre outras possíveis muralhas que parece terem havido antes desta. Porque as Muralhas, todas elas, tiveram um papel preponderante na vida e expansão da cidade. E Miragaia continuou a crescer mesmo fora das posteriores Muralhas Fernandinas do séc. XIV. Mas o nosso passeio de hoje tem dois começos e um fim comum. Os Judeus de Miragaia.
Comecemos então por um lado tendo como referência a Rua da Restauração, nas traseiras do Palácio de Cristal que fica bem lá no alto de um imenso morro, que muitas vezes escalei quando "chavalo" para entrar de borla, e olhamos para Monchique e para as ruínas do seu extinto Convento, construído no séc. XVI. Ah, a bela-triste história dos amores de Simão e Teresa e da pobre Mariana, enredo apaixonante de Camilo Castelo Branco no seu best-seller Amor da Perdição, escrito em 1862 no Aljube (Cadeia da Relação) e do qual faz parte o velho Convento.
Ora este Convento foi erigido no local onde existiu uma Sinagoga até pelo menos 1386 e que terá sido a terceira da Cidade. Posteriormente, os terrenos foram doados em 1410 por D. João I aos Coutinhos, cujas origens nobiliásticas eram muito antigas. Nestes terrenos foi construída uma casa para residência, mas as leis do Porto não permitiam presenças fidalgas na Cidade para além de um pequeno período por ano. Acabou por ser construída na clandestinidade e para a legalizar demorou dezenas de anos, que nem as "cunhas" do Rei tiveram força para dar contorno à lei. Outros tempos...
Para já continuemos a fixar-nos no Convento. Descendo a Rua de Sobre o Douro podem visitar-se as ruínas pois a proprietária actual (Sociedade Clemente Meneres) permite-nos esse prazer. Que é relativo, claro, na minha opinião. Diz-se que será um novo hotel em breve. Para já não se percebe nada que o indique. Mas sigamos. Já no reinado de D. Manuel I e os judeus expulsos da região para a Vitória, e logo a seguir de Portugal, os tais Coutinhos, descendentes dos outros, conseguiram que a casa fosse legalizada, mas não autorizados a viver nela, e destinaram-na a um Convento. Pelo menos, uma parte. O que conseguiram, com cunhas do Bispo.
Sobre a Sinagoga, não há registos. E dos poucos achados arqueológicos, relativamente recentes, um foi preservado. É uma inscrição em hebraico numa pedra, mantida na Capela/Igreja do Convento e transladada para o Museu de Arqueologia (?) no Convento do Carmo, em Lisboa.
Depois da extinção das ordens religiosas, no século XIX, pouco sobrou. Sabe-se que a Capela ou Igreja, construída em 1535, era uma preciosidade em talha dourada, equiparada à das Igrejas dos Conventos de Santa Clara e de S. Francisco. Desmantelada, foi um altar para a Igreja de S. Mamede de Infesta, outro para a Igreja de Massarelos e outro para a de S. Pedro de Miragaia. Do resto nada se sabe. Coisas à moda do Porto.
Passemos agora a outro percurso para iniciar o segundo começo, pois a história faz-se de caminhos. Saindo do Largo do Viriato, toponímia que passou a vigorar apenas em meados do séc. XIX, entramos na Rua da Bandeirinha, antes conhecida pela Bandeirinha da Saúde. Desde o séc. XVII. Já lá iremos.
Passando por várias casas que foram habitadas ou berço de ilustres individualidades da cidade, encontra-se o Palácio das Sereias, ou da Bandeirinha ou dos Portocarrero, nome dos penúltimos proprietários, por eles adquirido aos Cunhas e Vilhenas. (A senhora Vilhena foi quem mandou construir o Convento de Monchique) . Hoje pertença de uma irmandade religiosa. Construído no séc. XVI, vamos deixar a sua história para outra altura.
Pela esquerda continua a Rua da Bandeirinha, que nos vai levar à história original dos Judeus em Miragaia. Até ao século XIII viviam os Judeus dentro da Cividade (a zona junto à Sé - Morro de Pena Ventosa - demarcada pelas muralhas primitivas) ou a ela chegada, mas a partir dessa altura foi proibido alugar ou vender-lhes propriedades. Isso levou-os a partir para Miragaia.
Ao fundo da Rua um largo onde se encontra a Torre da Saúde, construída no séc. XVII, que sinalizava a entrada dos barcos no Douro e também para efeitos de controle sanitário.
À direita temos a frontaria do Palácio, com grande destaque para as Mamudas (As Sereias) que ornamentam lateralmente a porta de entrada. Velhas estórias sobre elas e quem as sabe contar é o Hélder Pacheco.
Uma foto de há mais de 100 anos, da autoria de Arnaldo Soares ou de Alberto Ferreira.
Dito por uns, este foi o local onde existiu o Cemitério Judeu. Mas outros crêem que terá sido no final da Calçada das Virtudes, próximo da Igreja de S. Pedro de Miragaia. É muito para lá, a oriente. Quer dizer que a história faz-se depois, relacionada em palpites e não em documentos precisos. Porque os não há. E a arqueologia nem sempre é presente. E cada historiador tem direito ao seu parecer. Adiante.
Certo é que os Judeus ocuparam este Monte, a Escarpa da Bandeirinha (na altura, não sei como lhe chamavam), hoje há as Escadas das Sereias, subindo desde a "Praia" (onde está a Alfândega Nova) e estendendo-se até Monchique para ocidente. A confirmá-lo há os documentos do Cabido de 1380 referentes à cobrança por terrenos a algumas famílias judaicas. Reproduzo conforme li. Porque não a todas as famílias ? Será que o Cabido não era dono de todos os terrenos? Adiante.
O único legado, eu diria lembrança, da Judiaria de Miragaia que aqui existiu até à sua mudança obrigatória para a Vitória em 1386 por ordem de D. João I, é a toponímia. São ruas, travessas e escadas estreitinhas. Aliás o que era normal na idade média. Francamente, lendo aqui e acolá e percorrendo as várias vias de hoje, parece que o espaço da Judiaria seria enorme, e não tão só Monchique e Bandeirinha.
A Rua do Monte dos Judeus começa a uma dezena de metros da Bandeirinha. O tal local onde existiria o cemitério Judaico. Segundo uns.
E prolonga-se para Oriente. Até aos Cidrais.
Um documento de 1410 refere que foi dada autorização a Gil Vaz da Cunha para construir umas moradas no pequeno monte em que tinham habitado os Judeus e onde existia uma Sinagoga abandonada. Ora isto era em Monchique que fica um pedaço de caminho para ocidente.
Mas também é verdade que as demarcações urbanísticas de há 600 anos são muito diferentes das de hoje. E o que vale agora é a divulgação destes "novos" caminhos, sentir a sua vivência antiga - eu sinto e por isso os percorro - e olhar o que nos rodeia. Esta foto é do início (ou o fim, conforme as percorramos) das Escadas do Monte dos Judeus.
Logo a seguir estamos nos Cidrais. Nome que deriva de Pomar de Árvores Cidreiras, de cujo fruto se extraía uma bebida que substituía o vinho, por quanto - e no enquanto - as vinhas não eram (foram) muito vulgares nos tempos dos romanos e da Alta Idade Média. Vale a pena deter-mo-nos e olhar à volta.
O entroncamento e cruzamento de ruas. Casas características dos séculos XIV a XVIII, guardando ainda resquícios desses tempos, mas que durante a sua recuperação não terão sido salvaguardados.
Descendo as Escadas, logo à esquerda encontramos um largo. Nele está uma fonte do séc. XIX, trasladada do antigo Mercado do Peixe, onde é hoje o Palácio da Justiça. No sítio da Junta diz que está em restauro. Refiro não saber se o restauro já está completo. Desde há 3 anos que vejo a Fonte mais ou menos como está. É verdade que agora escorre uma gota de água por um buraco na parede. Mas não sou bom nestas coisas. E a Junta é quem sabe.
O largo é lindo, com a fonte, árvores, bancos e roupas estendidas com bom cheiro a lavado. Mas num cantinho há lixo. Restos de persianas, latas de tintas, pedras e tijolos partidos, etc. - que raio de povo este sempre pronto a emporcalhar o que não deve -. E também se vêm pedras dispersas a fazer lembrar coisas antigas. Penso eu. Na dúvida e tentando matar a curiosidade, escrevi à Junta de Freguesia, enviando esta foto pedindo uma informação. Ora isso foi em meados de Maio e até hoje...
Convido a uma paragem, sentar num dos bancos, puxar de um cigarro e deixar o olhar percorrer Miragaia. É um prazer. Que para ser completo, mesmo, mesmo, era ter a companhia de uma cervejinha.
Na saída aberta no muro à direita, por cima, a pedra que une as ombreiras tem uma inscrição. Não sei em que língua. Infelizmente a foto em que a tentei gravar "pirou". Mas creio ser uma inscrição hebraica.
É a hora de voltar a percorrer as ruas e escadas, por entre muros e séculos de história.
Aqui chegados vindos pelas Escadas dos Judeus, estamos próximos do Centro de Miragaia. Viríamos cá ter na mesma, mais metro menos metro, se optássemos descer por Monchique ou pelas Escadas das Sereias.
Mas isso são outras viagens que prometo para breve. E já agora fica uma recomendação para os viandantes: Miragaia não se conhece num dia e as caminhadas façam-nas de cima para baixo. A não ser que gostem de desportos radicais. Mas para esses, recomendo a subida anual dos 250 degraus dos Guindais.
Nota final: São muitos os sítios percorridos para coligir estórias da história. Como sou muito despistado, raramente me lembro de registar onde li ou vi algo de interessante. Por vezes aparecem-me várias opiniões sobre o mesmo tema. Aí quero, ou pelo menos tento, confirmar in loco. Para conhecer e ser o mais fiel possível. Por essas andanças descobre-se sempre uma coisa nova. Por isso as fotos publicadas podem diferir entre si meses.
E há sempre os amigos, tanto ou mais apaixonados do que eu pela nossa Cidade, que deixam mais uma informação preciosa. Afinal, a Cidade do Porto é uma Paixão.

5 comentários:

  1. Jorge

    Agora é que dá vontade de me repetir até á exaustão: és um Cicerone magnífico, sem pretensões de substituição aos que, oficialmente, deveriam existir.

    Belíssimos Roteiros e magníficas fotos Documentais, acompanhadas de notas (altas) para a pretensão que tens de dares a conhecer essa tua (nossa) Cidade do Porto.

    Continuo a ficar-me com as recordações, já que me falta pedalada para tanto descer ou subir.

    Abraços

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  2. oi Jorge
    Gostei muito das fotos,estão ótimas, fui pesquisar sobre a lenda do rei ramiro e do rapto da princesa e depois como ele mata a pobre rainha, é muito interessante, adoro lendas e estórias antigas.
    Bjs
    Regina

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  3. Histórias muito interessantes.
    Obrigada por compartilhar!
    Um abraço.
    Malu.

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  4. Sr. Jorge - tem razão o senhor quando diz que a cidade do Porto é uma paixão!
    Nós conhecemos estes dois bairros quando lá moravamos mas jamais pudemos imaginar as suas
    riquezas históricas, como as que o senhor nós relatou. Obrigado por tudo que os senhor nós
    manda. Os seus "foot notes" são muito importantes para a nossa compreensão dos detalhes
    mostrados. Só para nós situarmos geográficamente, (AFINAL JÁ SE PASSARAM 18 ANOS), a primeira
    foto é do lado do oceano Atlântico da ponte da Arrabida ou pelo lado oposto? As 'muitas e novas'
    construções transformaram o "landscape" da cidade e isto eu digo apenas para me desculpar pela pergunta - aparentemente inócua, irrelevante e que demonstraria grande desconhecimento da cidade
    querida... . . . . . .

    Attila Sarkozy

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  5. Escusado será dizer que respondi pessoalmente ao meu querido amigo Attila

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