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segunda-feira, 7 de março de 2011

65 - A Rua do Bonjardim

A Rua do Bonjardim é uma velha artéria já referida no séc. XIII e que ligava o limite da Cidade de então, desde o Postigo e posteriormente Porta de Carros (aos Congregados), até ao Largo da Aguardente. A actual Praça Marquês de Pombal.Se não foi estrada Romana, foi pelo menos uma via medieval prosseguindo para o Norte de Portugal. Não consegui localizar esta imagem da rua no fim do século XIX ou princípios do século XX. Mas acertarei se julgar que é onde termina Alferes Malheiro, de quem vem da Estação da Trindade ?
Mas vamos descer a Rua que é bem mais fácil do que subi-la e apontar recordações minhas e também de alguma estória.
Então começamos pelo fim, no antigo Largo da Aguardente, hoje Marquês de Pombal. No meu tempo de menino, haviam por aqui uns terrenos e casas apalaçadas. À esquerda era a BIAL da família Portela, fundada em 1924 e cujo primeiro produto licenciado foi o Benzodiacol. De pequeno laboratório farmacêutico a empresa de nível mundial. Em frente era a fábrica de lenços Teixeira. Minha avó, minha mãe, minha madrinha, algumas vizinhas, trabalharam aqui. Mesmo em frente à Rua do Paraíso, famosa pela sua esquadra da PSP encontramos a Velha Fonte de Vila Parda, de 1859, recentemente restaurada. Por detrás, os montes que vão ou iriam dar à Fontinha.Um pouco mais abaixo, a Rua das Musas que vai de Camões até à Fontinha, uma das poucas artérias que cortam Bonjardim. Era uma zona de grande densidade populacional tipicamente operária. Por aqui passaram gentes que desenvolveram o Movimento Operário Português em meados do séc. XIX. Existiram também pequenas metalúrgicas e, dentro delas, as de fabrico de pregos, posteriormente encerradas devido à novíssima e bem apetrechada Companhia Aurifícia, fundada em Maio de 1876 e talvez por uma greve desencadeada a 12. A Rua das Musas já exisitia em 1777, mas chamava-se '' Monte da Musa, acima de Fradelos '' Os velhos bares que por aqui haviam nos anos 60/70 desapareceram. O Arco Íris, a Tentativa, etc. Daqui saiu um grupo de "baile" que fez as delícias da rapaziada com strip-tease ao som de Je t'aime mais non plus, nos Nazarenos, mais tarde Chez Toi, em Bissau.Muitos prédios ao longo da rua estão em ruínas. Não é excessão a casa onde nasceu o pintor Artur Loureiro em 1843.Chegados a Gonçalo Cristóvão e salta-nos à vista o imponente edifício do JN. Atravessada a via, vamos encontrar o Largo de Tito Fontes, antigo Largo do Bonjardim.A velha guarda lembra-se com certeza do Ginjal, aberto até às 500, muito frequentado para refeições a altas horas, de entre outros personagens da noite do velho Porto, pelo pessoal dos Jornais.
Tito Fontes foi um médico de grande valor, político e um impulsionador da plantação de árvores na Cidade por crianças das Escolas. Embora quási toda a sua vida fosse passada ou feita no Porto, nasceu e morreu em Valença do Minho (1854/1933).
No entanto o largo tem um busto dedicado a Raul Dória, professor, que fundou aqui próximo a Escola Comercial com o seu nome, nos primeiros anos do séc. XX. Foi este largo local de muitos comícios e actividades sindicais nos finais do séc. XIX.
Mais abaixo situava-se o célebre lupanar o "515", hoje um edifício residencial com loja no rez-do-chão.Abaixo um pouco, encontramos Alferes Malheiro e a ligação à Trindade, estação velhinha de caminho de ferro de via reduzida, hoje uma das principais estações do Metro.Em frente a antiga herbanária, agora muito remodelada, e as mercearias ainda com muitos "toques" de antigamente. O Bacalhau continua a ser a imagem de marca e aqui comprei muito dele entre 1960 e 1961, numa época de racionamento. Destinava-se a dar de comer a trabalhadores rurais que um colega já homem tinha numa propriedade em Gião, Vila do Conde. Por cada kg de bacalhau, hoje chamado do miúdo - custava cerca de 8 a 10 escudos - tinha de comprar outras mercearias.
Quando por aqui passo, muito gosto de olhar as velhas mercearias e matar saudades. E quási em frente, na esquina com Fernandes Tomáz, está a casa Lourenço.
Bons queijos e fumeiro aqui se encontram. E bons vinhos. É das melhores e mais sortidas casas do Porto. A Igreja da Trindade bem destacada em fundo.Do outro lado ainda funciona a antiga Tipografia Artes e Letras. Ao fundo do pequeno quarteirão, o ex-Café Portuense, sala dos mirones que vinham "lançar a buga" às meninas de Liceiras e Estevão. Em frente ainda podemos ler a inscrição dos Santos Douradores, especialistas em Molduras para quadros. Tinham também uma pequena oficina em Liceiras. Demoravam meses a fazer uma moldura. Mas toda a gente sabia que era assim mesmo e pronto.
Liceiras e Estevão. Chamava-se aqui o lugar de Bonjardim em Liceiras e vem mencionado no testamento do bispo D. Vicente Mendes, em 1296. À direita, O Portuense. Tudo a desfazer-seContinuamos a descer e no cruzamento com a Rua Formosa outra célebre mercearia, A Casa Januário, cuja especialidade era o Café. Para os pobres, a Mistura de 12 (escudos) e a Cevada a 4. Se a memória não me falha eram estes os preços em princípios dos anos 70. Mas também as especiarias, vendidas aos 10 gramas em pacotinhos de papel vegetal. E as especialidades para o Natal. E os biscoitos. E E E..
À esquerda, o Palácio dos Correios. Neste quarteirão ainda por cá estão o alfarrabista (meu fornecedor preferido), uma das casas de peles, o ferrageiro, a farmácia, enfim, algum do comércio tradicional portuense. Quem já cá não está é a Padaria Ceres, embora o prédio lá esteja em ruínas. Era de requinte comprar nos anos 60 qualquer coisa que levasse farinha, na Ceres. Nem o Costa Pina, cujas instalações passaram para o César Santos, dos utensílios de cozinha, a preços muito bons. Diria mesmo, dos mais baixos do mercado. Passe a publicidade. Ultrapassado o cruzamento com a Rua Formosa, damos com uma das zonas de restaurantes. O Pedro dos Frangos, as duas Congas e o Solar da Conga. Junto a ourivesarias, Deus as guarde dos especialistas amigos do alheio, que andam muito activos nesta especialidade. Logo a seguir está a Praça D. João I e reconforta ver o edifício sede dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, finalmente restaurado. Foram dezenas de anos de luta, mas valeu a pena. Continuem com a obra, rapazes da escrita. Do lado esquerdo, o Café Garça Real, antigo Flórida, que combatia com o Odin, na Praça, pela supremacia dos clientes salgueiristas. Na Praça D. João I verdadeiramente dito, o teatro Municipal Rivoli. Mas acho que pertence ao Bonjardim.
Atravessada a Praça e a Rua Dr. Magalhães Lemos, famoso neurologista, estamos no último quarteirão da Rua do Bonjardim. O edifício onde esteve instalada a Cervejaria Stadium é mais um dos que se estão a desfazer.
É a zona dos restaurantes mais caros: a Maria Rita e a Regaleira. Este tem fama da invenção, através de um seu empregado ex-trabalhador em França, da célebre Francesinha, um dos ex-libris da culinária portuense a partir dos anos 60. Mas bom mesmo é o Rei dos Queijos. Apreciem a montra e ganhem apetite para um lanche.
Chegamos ao fim da Rua, que afinal é o princípio. Mas entendo que já foi maior, tendo-lhe sido roubada a parte nova de Sá da Bandeira. Como diz a história, na Porta de Carros (aos Congregados) começava a via da saída da Cidade...
Concluindo. À esquerda ficava o Bar Borges, refúgio dos "africanistas" e ponto de encontro para negócios. Normalmente acompanhados por belas figuras femininas. À direita a Brasileira do Telles, cujo edifício entrou finalmente em obras. Era outro ponto de encontro mas este das gentes do Teatro (Sá da Bandeira e Rivoli aqui a dois passos) e de alguns futebolistas de outrora. Pinga, Barrigana e uns tantos outros. Ainda à esquerda, está a travessa dos Congregados, que era recheada de restaurantes, que já foram do Povo. Ainda existem alguns a par de instalações bancárias. Mas ainda se pode lá comer a bom preço.
Boas caminhadas, boas comidas e melhores bebidas.