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sábado, 20 de abril de 2013

156 - Tripeiro eu sou

Muitos Amigos me perguntam o porquê de Tripeiros. E porque fazemos muita honra, os naturais ou habitantes da Cidade do Porto, mas não só esses, em usar este apelido.
Pois bem, a História diz-nos e a Lenda veio junta, que foi por causa de D. João I e do Infante D. Henrique.
Começando pelo princípio, a coisa é assim. Tripeiros, porque comem Tripas, os folhos e as favas - o chamado livro - do gado bovino. A partir daí criamos um típico prato culinário único no mundo, que faz dele uma curiosidade e vontade de ser provado pelos nossos queridos visitantes.
Mas o porquê da Lenda e da História ? Lá chegarei.
Conjunto Monumental da Conquista de Ceuta no Jardim do Calém, em Lordelo do Ouro.
Obra de Lagoa Henriques

Então tudo começa com a ideia de D. João I conquistar Ceuta, no Norte de África. Por questões Geográficas, para evitar a pirataria nas costas do Algarve; Sociais, porque a nobreza queria terras, honras e rendas; o clero, expandir a fé; a burguesia novos produtos e mercados. Económicas, porque poder-se-ía chegar ao trigo de Ceuta, um grande produtor e às especiarias e ao ouro vindos do Oriente transportados pelas caravanas que atravessavam o Saará. Políticas para nos adiantarmos aos Espanhóis não só pela defesa do Sul como pelo gosto das Descobertas de novos territórios.
Outra razão poderá ter sido o interesse do Rei em armar cavaleiros os seus filhos D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique, por feitos de guerra.
Neste escultura, de um lado temos artesãos. Do outro um açougueiro e um animal limpo.

Assim é organizada uma logística. D. Pedro, trata de mandar construir uma esquadra em Lisboa. E D. Henrique o mesmo no Porto. 
No Porto, D. Henrique é recebido com grandes honras como filho da Cidade, pois aqui nasceu. E também pela forte relação do pai, o Rei D. João I, à Cidade e que durava há mais de 30 anos. Ninguém soube a finalidade da sua visita, assim conta a história.


Os antigos Cais de construção naval no Rio Douro

Embora ignorando-se a finalidade de tão grande empreendimento, foi dado todo o apoio para a construção de vários tipos de embarcações nos estaleiros do Douro, desde o Ouro a Miragaia.

Parte da Cordoaria vista da Cadeia

Também os Cordoeiros do Campo do Olival -daí veio o nome Cordoaria como ainda hoje é conhecido  o enorme espaço entre os Clérigos, a Reitoria da Universidade, o Palácio da Justiça e a Cadeia e Tribunal da Relação (Centro Português de Fotografia actualmente)- deram o seu apoio. Bem como os ferreiros da Ferraria de Baixo, junto a Miragaia/S. Nicolau.

Réplica de uma Nau Quinhentista que pode ser vista em Vila do Conde

Nas terras vizinhas da Maia, Gaia e Bouças (hoje Matosinhos) prepararam-se as provisões para a numerosa frota que o Infante D. Henrique deu por pronta em inícios de Junho de 1415.A armada zarpou do Rio Douro em 10 de Junho e era composta por mais de 70 navios afora muita outra fustalha. Nela embarcaram milhares de Portuenses.

Jardim do Calém. Recordações Marítimas

Ceuta é conquistada em 22 de Agosto de 1415 e os Portugueses tornam-se donos da possessão durante dois séculos e meio. Oferecida depois aos Espanhóis para sua defesa e que hoje ainda guardam. Isso são outras estórias da história que os meus amigos interessados poderão ler em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ceuta.

Pois então vamos até onde começa a lenda dos Tripeiros. O Porto forneceu para toda a frota os mantimentos que tinha e as carnes foram limpas, salgadas e acamadas nas embarcações. A Cidade sacrificada ficou para si com as miudezas e as Tripas e foi com elas que se alimentou inventando o excelente prato de culinária que é hoje um ex-libris.
Para mim tenho que não só os Portuenses devem ser denominados Tripeiros. Todas as regiões à volta da Cidade, e não só as que atrás distingui segundo a história, mas também às que hoje denominamos como do Vale do Sousa,  eram grandes fornecedores de carne à Cidade. Para mim são tão Tripeiros como eu. Vamos seguir.
Isto são as Tripas do gado bovino. Folhos e Favas.

Cartaz tipo que se colocava devidamente destacado nos vários restaurantes da Cidade no dia das Tripas, normalmente às Quintas-Feiras e aos fim de semana. O que ainda hoje acontece. Tradição é isso mesmo.
Há uns anos atrás, com um grupo de amigos, fazíamos ao almoço a "Viagem às Tripas" nesses dias.

Lembrando santuários das Tripas, vamos percorrer um pouco a Cidade. Na foto acima, a Praça dos Poveiros e em destaque o edifício Aquiles de Brito. O segundo andar foi meu (local de trabalho, expressão simplificada mas verdadeira durante uns anos). Por baixo era o Restaurante Ribeiro, fechado há uns anos. À direita é a Rua de Passos Manuel onde ainda existem o Tripeiro e o Escondidinho.
À Esquerda, é a Rua do Campinho onde existiu a famosa Mamuda. Consta-se que o grande artista Vasco Santana, num célebre dia ao abrir as portas à texas perguntou se era ali a Mamuda. Resposta pronta: vá chamar mamuda à pkp. Disse o Vasco, é aqui mesmo rapazes. Em frente ficava o simples mas acolhedor Dois Irmãos ou Irmãos Unidos, já não me lembro bem. Ainda lá fiz umas festinhas de Natal.
Na foto de baixo, é a Rua do Loureiro onde existiu o célebre Onix que muitas recordações me deixou.

Fotos acima à esquerda é a Travessa dos Congregados, onde existiu o primitivo Girassol. Ainda encontramos por lá o Paris, o Novo Paris, A Viúva (primitiva) não sei, o Romão. 
À direita é o início da Rua do Bonjardim e lá estão, à esquerda, a Maria Rita e à direita a Regaleira.
Infelizmente o Rei dos Queijos, que não vem para esta história, já fechou.

Nesta sequência temos em cima a Rua da Madeira, do lado esquerdo da Estação de S. Bento. O Quim ainda faz umas Tripas muito boas que se podem também comer ao lanche. Mas há o Viseu e mais uns tantos de que não me lembro o nome.
Na foto de baixo é a zona da Ribeira e os seus imensos restaurantes. Mas foi na Adega de S. Nicolau - renovada e linda - que comi ultimamente um bem apaladado pratinho delas.

Antigos Tascos-Adegas que mantiveram o nome, transformados em Restaurantes íntimos e bem simpáticos. A comida, especialmente as Tripas continuam a ser raínhas.
Muitos outros Restaurantes serviam Tripas à maneira. Não sei se ainda existem. Era o caso da Fernanda e do seu vizinho Fernando, o do Caçarola, um às Quintas-feiras e outro aos Sábados faziam-nos a delícia dos olhares e estômago. Estes eram (não sei se ainda são) na Rua da Alegria, entre as Ruas da Firmeza e a da Escola Normal. Mais ou menos a meio. Era uma subida dolorosa mas bem compensada.
Outros haviam e alguns ainda os hão: o Ramos no Bonjardim, o Buraquinho do Freixo, o Manel do Heroísmo (este depois de deixar o Buraquinho), o Manuel Alves (primitivamente no mesmo local do Manel, depois passou para a Avenida Fernão de Magalhães), o Pedro dos Frangos no Bonjardim; e a Confeitaria do Bolhão na Rua Formosa.
A talhe de foice vou apenas referir o Restaurante Salmão, antigamente A Ramadinha, no largo do mesmo nome, junto aos Poveiros. O prato não é mau mas os seus preços são exorbitantes. Não recomendo.
Em Gondomar, não posso deixar de referir o Vigário, na Aboínha e o Choupal dos Melros, em Fânzeres. Mas só por encomenda. E que encomendas eles nos fazem...





Servidas com requinte ou em convívios de amigos, de confecção simples ou mais sofisticada, as Tripas são o prato de excelência e o preferido pelos Portuenses e não só.

Claro que as tripas em si, são comidas em vários locais do mundo. Temos os Callos à Madrileña -ou/e também os Asturianos-, a Dobrada Brasileira e Lisboeta, o Cassoulet Francês, as Drzky Checas; e as famosas Tripas Escondidas Transmontanas.
Mas agora entra em acção (já entrou antes e onde fui beber algumas dicas) o meu amigo Joel Cleto dizendo que talvez a Lenda dos Tripeiros tenha  origem muito mais antiga, remontando ao séc. VI e à época Suévica. O povo Suévo após a queda do Império Romano, atravessou toda a Europa, passou por França, demorou-se no norte da Península Ibérica e acabaram por se fixar no seu Noroeste,  estabeleceram um Reino onde o Porto foi uma das mais importantes Cidades e chegou a ser Capital. 

(Joel CLETO – Lendas do Porto: A Origem dos Tripeiros. O Tripeiro, 7ª série, vol. XXVII (7), Porto: Associação Comercial, 2008, p.210-211.)


Posto isto, não sei se a rapaziada daqueles tempos comia as tripas com feijão. Este parece que teve a sua origem no Peru 10 mil anos antes de Cristo, passou à América do Norte e já era conhecido na Grécia antiga e os Romanos davam-no a comer aos seus guerreiros. 
As Tripas exigem o feijão branco, mas como fomos melhorando ao longo dos séculos a arte de confeccionar este prato, para dentro da panela vão também cebola, alho, cenoura, tomate, colorau (ou pimentão doce) pimenta, cominhos. Pés de porco, toucinho (fresco e fumado ou bacon inglesando o nome), chouriças diversas, salpicão, presunto, galinha. E um toque final de salsa picada. 
Exigido também é o arroz branco (tipo arroz crioulo) e vinho tinto. Douriense ou Alentejano, mas também cai bem um Verde de Lavrador.

Aos meus Amigos deixo então o que aprendi e li. Lenda e História são tão juntas como não há fumo sem fogo. Desejo-lhes bom apetite e o meu recado: Tripas é comê-las sempre que um homem quiser.